terça-feira, 24 de novembro de 2020

AS CRISES DA DEMOCRACIA

A editora Estampa publicou recentemente um livro do filósofo francês Marcel Gauchet intitulado A Democracia entre duas crises e muito do que diz vem de encontro a tudo aquilo que se discute/reflete em sala de aula. Só para levantar a pontinha do véu aqui ficam algumas das ideias principais.

Para o autor, a democracia «é por definição o regime onde o desacordo, o protesto, o repor em causa as situações adquiridas nunca podem cessar» (p.18). Por ser um regime "aberto", a democracia está periodicamente sujeita a crises de crescimento que podem pôr em risco a solidez dos seus fundamentos que nunca têm uma versão definitiva, mas estão em permanente reactualização.
A primeira grande crise da democracia tem raízes no período 1890-1914, explodindo na sequência da Primeira Guerra Mundial e atingindo o pico nos anos 30 do século passado. Esta primeira grande crise caracteriza-se, principalmente, pela incapacidade do regime parlamentar representativo (expressão político-institucional do advento da democracia e da conquista do sufrágio universal masculino) se revelar, ao mesmo tempo, «enganador e impotente» (p.33), em consequência da rutura entre representantes e representados perante a divisão do trabalho e o antagonismo de classes. A incapacidade dos regimes parlamentares em encontrar uma solução institucional para os conflitos e o fascínio de alguns liberais e conservadores tradicionais pelas soluções autoritárias, estiveram na origem do triunfo do nazismo e do fascismo sob os escombros da fraca liberal democracia (aquilo a que chamaríamos regressão do demoliberalismo e  consequente ascensão dos regimes totalitários).
O pós-Segunda Guerra Mundial deu início a uma nova etapa em que a democracia parecia definitivamente consolidada. Assim, após 1945, o sufrágio universal com a conquista do direito de voto pelas mulheres triunfou. A nível institucional, o poder executivo foi subordinado ao controlo parlamentar. A construção do Estado social constitui o momento determinante da grande síntese liberal democrática, já que este «não é apenas um instrumento de proteção da independência real dos indivíduos contra os acasos suscetíveis de a ameaçar (a doença, o desemprego, a velhice, a indigência), é também um instrumento de controlo da sociedade no seu todo e de domínio, do ponto de vista da justiça» (p.39).
Os anos 80 do século passado iniciam um processo de rutura com a síntese liberal democrática que contribuiu para inaugurar uma segunda grande crise da democracia. A desregulamentação dos mecanismos económicos põe em causa o equilíbrio entre democracia e liberalismo e instaura a hegemonia do segundo sobre o primeiro. A comunidade política transforma-se numa sociedade de mercado em que a ideia clássica de "governo" como controlo da economia pela política se transforma em mera "governância". Mas todas estas mutações desembocam na ascensão de uma nova forma de individualismo que, a pretexto da defesa da autonomia relativamente ao Estado, não hesita em pôr em cheque o poder coletivo baseado na soberania do povo para instaurar a soberania de um individuo sem passado, projetado num futuro "irrepresentável" e encerrado "num perpétuo presente" (p. 43).

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